"o cheiro do calor, os troncos nus que, sentados, fumam intermináveis cigarros e celebram o fumo mágico. e eu canto a vida assim, com as ruas lá em baixo, sujas de gente. e eu canto assim, com a cabeça cheia, com a cabeça em chamas, eu canto a desobediência, o movimento extremo, a acção directa. eu canto o fumo e o líquido que se enobrece dentro do corpo e faz rebentar auroras dentro do pensamento. eu canto as bebedeiras e a sociedade secreta de criaturas perdidas. a comunhão entre alcoólicos e animais mitológicos, eu canto também os reis e as rainhas, as roldanas de um motor, os peões que avançam no tabuleiro e também todas as pessoas que conheci e irei conhecer. todas as que me ajudaram a perceber alguma coisa e todas as que me ajudaram a desperceber tudo. eu canto também os beijos e o tempo incomparável do enamoramento, eu canto também a violência gratuita e a pornografia, a natureza que se satisfaz apenas em estar viva, eu canto os mortos por estarem muito longe de mim e canto os vivos para os vivos, canto a degradação, e os sentimentos depressivos e também de vez em quando, e porque não?, a grande alegria, a grande alegria de não estar sozinho, de estar metido com gentes dentro da cabeça da noite, canto tudo e, talvez mesmo por isso, não canto nada. (mas isso também não faz mal)."
Rafael Dionísio in "textos mais ou menos poéticos"